Todos reconhecemos que inovações tecnológicas dos mais variados tipos introduzem transformações em nossas vidas. Além das transformações que presenciamos em primeira mão, somos capazes de ter acesso a inúmeras outras quando estabelecemos contato, por meio de relatos dos mais velhos, livros, filmes, viagens, etc., com os modos de vida de épocas e lugares em que uma ou outra tecnologia ainda era desconhecida. Esse tipo de contato com o antes de determinada tecnologia, torna fácil perceber as transformações por ela geradas no depois.
Quem não sabe que, antes da energia elétrica, a família se reunia ao redor do piano? Quem desconhece que, depois da energia elétrica, o piano foi substituído pelo rádio e, ainda mais recentemente, pela televisão? Alguém que tenha uma geladeira que já parou de funcionar pode desconhecer as transformações que este eletro-doméstico gerou na nossa relação com o mercado de suprimentos? Quantos de nós, acostumados que estamos às calculadoras de bolso, ainda sabemos fazer contas de cabeça ou na ponta do lápis?
Não parece haver dúvidas de que nossos comportamentos e hábitos podem sofrer alterações em função do desenvolvimento de novas tecnologias. O difícil é perceber que algumas tecnologias têm impactos bem mais profundos sobre os seres humanos que a ela são expostos, chegando mesmo, embora em raros casos, a gerar transformações internas radicais. Em outras palavras, embora seja fácil detectar que novas tecnologias têm o poder de alterar nossos hábitos e nossas formas de agir, é bem mais difícil registrar que algumas tecnologias também podem alterar radicalmente nossos modos de ser (como pensamos, como percebemos e organizamos o mundo externo e interno, como nos relacionamos com os outros e com nós mesmos, como sentimos, etc.).
No que se segue, tento tornar claro que é exatamente isso que está acontecendo. Para tanto, revisito os cenários que reconhecidamente levaram à emergência da organização psicológica – a do indivíduo – vista como característica do século XX (ao menos no Ocidente). Com a ajuda de autores clássicos e contemporâneos, exploro o período de grandes transformações sociais e subjetivas que se seguiu às descobertas de diferentes fontes de energia inanimada nos séculos XVIII e XIX. Procuro identificar semelhanças e diferenças nos processos de mudança externa e interna, desencadeados então, e naqueles que estamos vivendo neste início de século.
A partir dessa análise, argumento que, tal como aconteceu naquela época, a organização psicológica contemporânea está sendo profundamente transformada por desenvolvimentos tecnológicos e que a psicologia não pode ficar alheia a isso.